A chegada da linha férrea, com a criação de uma estação no município de Uyuni, transformou o local
Em pleno altiplano boliviano, a 3600 metros de altitude, Adelio Florez busca resgatar as origens do povo tahuanaca, habitante ancestral de um dos maiores atrativos turísticos bolivianos. Conhecido como Salar de Uyuni, nome estabelecido por decreto governamental, as comunidades locais ainda o chamam de Salar de Tunupa, por estar localizado às margens do vulcão de mesmo nome.
A chegada da linha férrea, com a criação de uma estação no município de Uyuni, transformou o local no centro dos serviços logísticos e turísticos que envolvem o grande salar, que possui extensão de 10 mil km² e continua crescendo, pois as inundações da temporada de chuva vão espalhando o sal ainda mais. Há 40 mil anos, antes da formação da Cordilheira dos Andes, tudo aquilo era um grande lago salgado.
O chamado Salar de Uyuni se encontra dentro dos povoados de Tahua e Llica, que são proprietários comuns da Incahuasi, uma ilha pedregosa repleta de cactos rodeada por uma imensidão branca formada por sal, parada quase obrigatória dos tours que levam turistas em jipes para cruzar o deserto.
As comunidades dividem os ganhos com os ingressos, que custam cerca de 10 reais. Fora isso, as comunidades pouco se beneficiam do turismo, operado pelas agências localizadas em Uyuni, que cobram cerca de 100 dólares por pessoa para um passeio de três dias com tudo incluído.
Sobrevivendo no deserto
Da ilha se pode avistar ao fundo, no sentido oposto ao que seguem os tours, o grandioso vulcão Tunupa. Cruzando em linha reta boa parte do deserto se chega à comunidade de Tahua, localizada nos pés do vulcão e às margens do salar.
Ali não há sinais de turistas, fora um hotel construído e nem sempre ocupado. A pequena praça central quase sempre se encontra vazia, pois os habitantes passam o dia nos plantios. A prefeita de Tahua, Felicidad Lopéz, destaca o cultivo especialmente de produtos andinos, como as batatas, habas (parecido com feijão), o chuño (batata desidratada) e a quinoa, que o povoado se orgulha por ser considerado um dos locais de origem deste grão nutritivo. “Temos que plantar tudo com nosso próprio esforço, com nossas mãos, pois não temos máquinas para isso”, afirma a prefeita.
Outro elemento importante para a vida dos habitantes do salar é a lhama, considerado um animal sagrado. “Domesticar a lhama foi parte fundamental para formar nossa cultura, já que éramos errantes por causa do frio. Com o animal conseguíamos cruzar o salar de uma ponta a outra”, conta Adelio Florez, do Comitê Cívico de Tahua. “Ela nos dá vestimenta com sua lã, comida com sua carne, combustível com seu adubo e até seus ossos servem para fazer agulhas para costurar”.
O sal também é importante, pois além de dar sabor à comida, permite fazer o charque com a carne da lhama, produto fundamental para alimentação local. A comunidade de Colchani, na entrada do Salar, possui uma cooperativa que realiza a extração de sal e lítio, mas não é o caso do município de Tahua, que durante a temporada de chuvas ainda se vê isolado por conta das inundações.
A situação não é fácil, mas a comunidade vem despertando para o potencial de suas belezas naturais. “Não temos muitas terras, boa parte das terras aqui são muito pedregosas, difíceis de plantar. Por isso estamos apostando também no turismo. Nossos atrativos estavam dormindo e finalmente resolvemos despertá-los. Vamos promovê-los porque não temos terra suficiente para viver”, comenta.
Turismo comunitário como alternativa
Estar ao mesmo tempo tão próximo e tão esquecido pelo turismo de massa é uma oportunidade que a população local e alguns profissionais de turismo tentam potencializar.
Em julho, a comunidade inaugurou nas proximidades de Tahua um novo atrativo turístico: a Cueva Chiquini, gruta formada por estromatólitos, aglomerações parecidas com recifes formadas por algas e bactérias marinhas. “Estas montanhas foram feitas e desenhadas por grandes forças geológicas da terra e desenvolveram formas tão inverossímeis e belas. São um encanto, verdadeira obra prima da natureza” diz Jorge Rivera, sócio da Creativa Fremen Tours, empresa que trabalha na perspectiva do turismo comunitário junto à comunidade de Tahua.
Ele trabalha há muitos anos na região, já percorreu quase todo o deserto, mas é taxativo: “Este é o lugar mais bonito do Salar!”, exclama. Do lado de fora da gruta, uma camada de vegetação alaranjada separa a estrada da imensidão do deserto de sal, que nesta zona se encontra com montanhas e o vulcão. Acompanham a paisagem pequenas lagoas formadas no sal e flamingos. Rivera afirma que esta parte, que ele chama de “Salar Sensual”, é pouco conhecida e visitada pelo turismo, que explora mais a parte plana do deserto. “Aqui está cheio de baías, de formas sutis, suaves, com uma delicadeza extrema formada há milhões de anos. Por isso digo que é o Salar Sensual do ponto de vista da arte, da beleza”.
Há poucos quilômetros dali, outra maravilha: uma imensa formação rochosa guarda diversas pukaras, casas ancestrais construídas na pedra. “Temos oito grandes ruínas neste lugar, somando entre 200 e 400 moradias. Há cerca de 3 mil anos, haviam pelo menos 10 mil habitantes, mais pessoas do que há hoje em dia”, diz Adelio Florez.
Jorge Rivera atenta para uma nova possibilidade criada pela Constituição Boliviana de 2009. “O ideal é que as comunidades se organizem em empresas comunitárias, que são uma nova modalidade reconhecida legalmente. A empresa comunitária é o melhor método para que as comunidades se beneficiem do turismo e para que este turismo seja aliado da natureza. É uma nova modalidade reconhecida, agora é preciso dar vida a isso”, afirma o empresário. Para ele, o empoderamento e auto-organização das comunidades é fundamental para evitar o turismo irresponsável no qual muitas vezes a comunidade local realiza trabalhos subordinados ou assiste consternada à destruição de seu entorno.
Ritual milenar resgata cultura
Outra importante ação para a comunidade é a celebração do ano novo indígena, que faz parte do calendário oficial do governo boliviano. Adelio conta que a cerimônia faz parte de um resgate ancestral. “Quando chega a colonização, aqui se celebrava a festa do ano novo aimara. Mas com a chegada da colonização impuseram um santo, São João. Pesquisando, descobrimos que já se festejava o ano novo 3 mil anos antes de cristo, muito antes que chegassem os aimaras”.
O ponto de celebração era importante para as comunidades que transitavam pelo salar milhares de anos atrás, pois possui bastante água disponível. Mas sua escolha se dá porque no solstício de inverno, dia em que se comemora o ano novo indígena, no nascer do sol do dia 21 de junho, o astro se geometriza exatamente na ponta de uma montanha. No solstício de verão, 21 de dezembro, o sol se alinha com outra montanha.
Este ano, a celebração chamada de Willka Kuti em aimara e de Inti Raymi em quéchua, foi realizada pela segunda vez oficialmente, com apoio do governo, e passou a ser promovida a nível nacional e também internacional, aproveitando a grande presença de estrangeiros na região.
“É muito importante esse resgate que estamos fazendo para a unidade da América Latina, pois essa cerimônia é celebrada por povos indígenas de todo o continente. Os povos originários da Europa, Ásia, África e todos os países devemos nos unir e resgatar nossos costumes para conservar nosso Planeta Terra”, afirma o sempre sereno Adelio Florez.
*O jornalista viajou através da expedição Ruta Inka 2013